O Verdadeiro Viajante no Tempo

06.03.12

                                         

 

 

 

 

 

Subitamente, dei por mim em lugares conhecidos, visitados em tempos idos. Sim, aquilo era sem dúvida o passado. Mesmo sem ser a preto e branco, o passado revisitado parece sempre ter uma tonalidade diferente, matizes irreais que talvez se tenham extinguido ou mesmo nunca existido. Mas o que é isto, afinal? Será isto um sonho? Só pode…

Lá estava eu, percorrendo novamente o extenso corredor da velha e orgulhosa casa de família, derradeiro reflexo de uma sumptuosidade já esbatida, mas sempre de queixo erguido. A luz entrava através das bandeiras das portas em longos focos, onde as agitadas partículas de pó pareciam bailarinas vindas de um outro mundo. Bailarinas?... Será um exagero da minha mente? Talvez… Sei que agora seria de bom tom referir-me aos verdes campos, de suados e infindáveis trabalhos agrícolas, às velhinhas de amargurado e saudoso negro, aos omnipresentes animais e a toda a panóplia de sons, cores e sabores de uma qualquer aldeia portuguesa. Seria, mas não o irei fazer… Não é para isso que aqui estou. Sinto-o! Subitamente sou trespassado pela versão jovem de mim próprio, lá pela casa dos catorze anos. Sim, eu quando era rapaz! Estranho… Ele pára, roda a velha maçaneta de vidro verde e latão e fecha-se numa das divisões da casa. Sozinho. Bem, eu segui-o, mas como somos o mesmo, julgo poder afirmar que estava realmente sozinho…

Ali estava a grande mesa de madeira, sempre majestosa e impondo-se de forma arrogante, apesar de eu saber como era trémulo o pesado tampo, ao qual sempre faltara a devida manutenção. Sobre ela repousava o jarrão de loiça tradicional que eu sempre considerara terrivelmente feio, apesar de eu naquela época viver numa década bastante flamboyant… Do lado esquerdo da mesa, o cadeirão de dois lugares de aspecto frágil, com as molas já a surgirem através do coçado veludo, parecendo que o conjunto se iria desmembrar espalhafatosamente a qualquer momento, numa cena ao jeito dos looney toons. Ao lado, um móvel sempre fechado à chave, sobre o qual repousava um grande rádio Telefunken Gavotte, uma verdadeira obra de arte nascida em tempos menos uniformizados. Eu gostava tanto de o ligar para contemplar a sua impressionante iluminação, para ver uma das suas válvulas ganhar lentamente vida, até se tornar um flamejante círio de cor verde, indicando que o aparelho estava “quente” e pronto a funcionar. Mas a verdade é que eu necessitava do seu nítido e vibrante som. O sequioso desejo de música era quase uma espécie de dependência que me dominava em determinadas altura, como se as minhas emoções precisassem obrigatoriamente de uma banda sonora que as espicaçasse até aos limites do razoável. O meu novato eu rodou cuidadosamente o botão até capturar uma das poucas estações existentes e, depois de uma rápida degustação, torceu o nariz e procurou melhor. Por vezes era tão difícil como conseguir um treze no totobola… Alto! Ali! Endless Road dos Time Bandits! Perfeito para qualquer martírio ou rasgo de felicidade! I dont want you to go my love! Pronto, estava tudo dito!Sentença promulgada…

Acertada a sintonização, virei-me com ele para o outro lado da sala e encarei com o seu objectivo! Ah… Pois… Uma antiga secretária embutida num conjunto de estantes que cobriam toda aquela parede. Haviam ali centenas de livros de várias épocas, alguns já degustados pelos incultos bichos do papel, essa raça perversa e covarde. Mas a criminosa bicharada era um pensamento pouco importante para o meu jovem reflexo. O que ele realmente procurava era bem superior a todas essas valiosas velharias. Sem perder mais tempo, abriu uma das gavetas e os seus dedos mergulharam por entre o mar de enferrujadas canetas de aparo, amarelecidos recibos, patéticos postais, dinheiro fora de circulação, cartas, fotografias e muitas outras coisas banais. Lá estava a fotografia, escondida por vergonha, mas nunca esquecida. Lá estava ela! Os longos cabelos negros, de tal maneira sedosos e brilhantes, que nunca encontrei as palavras capazes de os descrever. Aqueles vívidos olhos castanhos, expressivos, ternos e únicos… A sua nívea pele tão delicada… E aquele sorriso? Ugh… Aquele sorriso deu-me vida e aqueles lábios deram-me razão para viver. Ela era a soma de todos os meus sonhos e esse resultado ainda conseguia exceder tudo aquilo que a minha imaginação idealizara. Aquilo era amor, paixão, fé, devoção… Sempre em crescendo! Aquilo era só o princípio. Acho que só os infelizes como eu, caso os haja, perceberão o que aconteceu durante aqueles anos… Não! Estou certo que ninguém perceberá…

Ali estava ela em todo o seu esplendor, contrastando com a pardacenta tristeza de todos os outros objectos que nos rodeavam. A sua imagem parecia irradiar luz! Luz! Luz própria! Susana… Única estrela do firmamento, em torno da qual eu orbitava de forma estonteante e me fazia esquecer o negro interminável vazio da solidão. Que saudades aquele eu juvenil tinha dela! Sentia-o dolorosamente até às entranhas. A sério! Malditas férias escolares que eu outrora venerara como obra de uma divindade benevolente e atenta, mas que agora me pareciam um arrastado martírio, tormento arquitectado por um ser maléfico, talvez malvadez do próprio feiticeiro Frestão. Mas tudo muda… Se muda! Lá estava a sua imagem, ainda incontaminada por tudo aquilo que o futuro me revelaria lá mais para a frente. Naquele momento, o meu olhar parecia incapaz de se desviar, sob pena de imediata e fulminante cegueira… Que ingenuidade! Que doce ingenuidade… Mais tarde iria odiar-me por a amar tanto mas, naquela altura, ainda não havia tal veneno a correr pelas minhas veias, a tolher-me, a fazer-me definhar e duvidar de tudo o que tivera por certo... Ou seria aquele o verdadeiro veneno? Senti o desespero apoderar-se de mim, vergar-me através de memórias dolorosas, enfiadas nas profundezas da minha mente, mas nunca esquecidas. Tive então uma genial ideia estúpida… Já que eu estava ali como um ente diferente de mim próprio, talvez pudesse avisar-me, acautelar o porvir de certa forma. Sei lá... Pode parecer estranho, mas gritei para mim próprio:

Acorda, rapaz! Tu vais perdê-la! A vida irá separar-vos! Julgas que podes vencer as circunstâncias, rapazola?! Não podes! Não te apegues tanto, palerma! Vais sofrer! Vais sofrer como um… Caramba…

Não adiantou. Não me escutei. Naquela altura não escutava ninguém, porque razão me iria escutar a mim próprio em versão sensata? Raios! E se isto não for um sonho? Parece demasiado real para ser um sonho. Aliás, durante os sonhos, ninguém tem consciência de estar a sonhar! Será um episódio maravilhoso e singular?... Uma oportunidade… Poderia poupar-me a tanto sofrimento. Aqueles sentimentos iriam ganhar raízes mais profundas durante alguns anos para depois sofrer um golpe devastador. Uma machadada impiedosa e irreversível… Uma separação indesejada por ambos. Seria a dor da separação, a impotência por não ter podido fazer nada para a contrariar e um certo azedume por achar que ela devia ter feito o que eu não pude ou não consegui fazer. Porque é que ela não ficou? Porquê?! Centenas de planos loucos para fugirmos e escaparmos a esse destino e nem um se materializou… Nem um! Fomos debelados sem esboçar uma miserável reacção… Uma vergonhosa rendição aos pés do destino! Era suposto não existir nada em todo o universo capaz de nos separar… Nem mesmo aquele inesperado blitzkrieg de malditas circunstâncias… Onde estava a nossa força?! Onde?! Meu Deus… O certo é que ela partiu e eu fiquei. Ela entrou com os pais naquele monstro de lata voador e eu fiquei em terra, com a cabeça encostada a um vidro, esmurrando a parede até o sangue dos nós dos dedos a tingir, talvez até tenha chorado... Oh! Claro que chorei! Mas apenas a vi de longe. Não tive coragem para me despedir, não tive coragem para enfrentar a realidade nos olhos. Ficar… Ainda hoje essa verbo me perturba, me causa náuseas, em todas os seus tempos e formas… Não devia?! Pois não! As tontas paixonetas juvenis não merecem tanto! São vulgares coisas de miúdos que uma gargalhada adulta e séria apaga com a eficácia de uma esponja! Hahaha! Hum… Será? Não… É claro que não! Mas porque raio ficamos tão obtusos com o passar dos anos? Porque temos tanta vergonha dos tempos em que éramos genuínos? Estará a hipocrisia adstrita ao triste processo de envelhecer? Será assim tão importante para a nossa eficiência adulta sermos uns idiotas chapados? Tonta paixoneta?... Ugh! Então porque não foi também a dor tonta e transformada em infantil diminutivo? Porque sinto ainda um aperto no peito quando recordo esse momento? Eu bem tentei esquecer e quase consegui… Na minha vida real, digamos assim, tive sucesso mas, por vezes, recordo tudo com uma nitidez assombrosa, tal foi a força do cinzel desse sofrimento... Voltei a sucumbir ao desespero. Apetecia-me ajoelhar-me a meu lado e gritar aos meus juvenis ouvidos:

Deixa-a enquanto podes! Estás a ouvir?! Há outras raparigas! Isto vai-te marcar como um ferro em brasa, puto! Pensas que não? Pensas que a vida tem sempre finais felizes como na porcaria de filmes que vês?! Ouve… Eu sei que a amas, mas tens de a deixar agora! Esquece-a! Poupa-me… Poupa-te a tudo o que virá… Ouviste?!

A minha forma jovem voltou a ignorar-me. Pior! Abanou negativamente a cabeça como se negasse os meus apelos. Quis olhar-me de frente! Olhar o rosto daquele rapazola teimoso que ignorava os bons conselhos. Parvalhão! Apeteceu-me gritar-lhe com redobrado vigor! Porém, não o fiz… Havia um sorriso naquele rosto que era meu. Um sorriso tão largo e genuíno, que parecia contaminar o que o rodeava. Onde ia eu buscar tanta felicidade?

 

Time can only whisper truth for both of us

All the answers I can't find, I put my trust”

 

Simples… Muito simples, até. Eu amava e era amado. Tão simples como esta frase, tão simples como a letra da música. Não há explicação racional. Nem tem de haver! Que se lixe! E se alguém, algum dia a procurar… Para o diabo com ele!

 

And I want you to have my soul

Somebody show me the way”

 

Por vezes… Talvez as coisas tenham de ser assim. Talvez todas aquelas centenas de dias de felicidade superassem o sofrimento final, apesar de, infelizmente, este sempre parecer mais vívido na mente de quem já soube o que é sofrer. Sim, foi apenas por algum tempo… Mas durante esses anos soube o que era amor, felicidade… Como poderia arriscar tudo isso só para me poupar ao preço que tive de pagar por esses maravilhosos momentos? Senti vergonha do meu eu adulto. Uma terrível vergonha, uma profunda náusea…

Desculpa, miúdo… Esquece o que disse antes. Aproveita estes dias que tens pela frente, pois serão estupendos. Ama-a com todas as tuas forças, rapaz! É tudo o que deves fazer! Não te preocupes com o futuro. Ainda está distante… Talvez… Tenho orgulho em ti, orgulho no que eu era. Nunca deixes que eu pense o contrário…”

O sorriso do meu jovem alter ego tornou-se ainda mais largo. Teria escutado?...

 

Abri lentamente os olhos e demorei algum tempo a perceber onde estava. Estava no meu solitário quarto, na minha cama. Afinal, tudo não tinha passado de um sonho… Olhei para os infernais dígitos do despertador e constatei que faltava um minuto para também ele despertar… Menos! Na passagem de um minuto, o rádio ligou-se e o quarto foi inundado por uma melodia que reconheci de imediato e me fez sorrir…

 

It's an endless road till love finally comes our way

my love

 

Talvez… Talvez aquilo a chamamos dias seja apenas um repetir de oportunidades em contagem decrescente. São milhares numa vida! Eu apenas desejo mais uma e já desperdicei demasiadas…

 

Pedro Ventura (publicado na colectânea Páginas Lentas 3)

 


Novidades - Páginas Lentas 3

24.10.10

Fica assim "oficializada" a minha participação no Páginas Lentas 3, com um conto experimental de minha autoria - O Verdadeiro Viajante do Tempo. A organização dessa colectânea volta a ser do Grupo GICAV ( na pessoa do incansável e imparável José Cordeiro ). Já em 2008, o grupo publicou o livro "Páginas Lentas", uma obra composta por textos de 19 autores de viseu, tendo no ano seguinte publicado o PL2. O resultado da primeira experiência pode ser consultado em www.paginaslentas.blogspot.com.

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