Depois de um rápido corte de cabelo, depilação laser do rosto e uma prolongada sessão de maquilhagem, conduziram-no ao diminuto estúdio de gravação, mero cubículo, recanto de um recanto habitável.

   A entrevistadora veio ter com ele, apresentou-se e tentou serená-lo com um meia-dúzia de piadinhas banais. Era uma rapariga extremamente atraente, mas ele nem reparou - talvez estivesse realmente tenso ou apenas cansado de ver aquele número de catálogo em milhares de outros rostos.

   Os focos ganharam vida e uma luminosidade agressiva feriu-lhe a vista. O técnico, marido da rapariga, acertou os últimos detalhes sonoros e de edição de imagem, orientou-lhe o rosto e a expressão - que teimava em alternar o sorriso nulo com o ridiculamente exagerado, não obstante as indicações que eram dadas.

   Iniciou-se então a contagem decrescente.

   5

   4

   3

   2

   1

  - Olá a todos os ciberespectadores espalhados por esse mundo! - começou a rapariga, gesticulando com um excitação que quase escondia o artificialismo. - Sou a vossa querida Stella Harrisson do Canal Harrisson39 e tenho comigo Jamie Santana! - guinchando para a câmara. - O sortudo que foi sorteado para a Missão Barnard! É verdade! Descobrimos o homem de que todos falam! O homem invejado por milhões! É de loucos! Diz-nos como te sentes ao saberes que tiveste uma sorte fabulosa! Tu enlouqueceste as probabilidades, distorceste a sorte!

   - Eu...

   Um gesto do técnico interrompeu-o.

   - Agora temos cinco minutos de publicidade, querido - explicou a rapariga. - Só respondes quando quando a contagem voltar a zero. Mas tu nunca viste este canal?

   - Não. Não costumo usar os óculos. Nem tenho chip...

   A apresentadora olhou para ele e riu-se.

   - Tu és engraçado! Deves é ver a concorrência e agora estás com vergonha de admitir!

   Ele emudeceu e só voltou a falar algum tempo depois:

   - O meu nome é Jaime e não Jamie. Jaime.

   - Hã?... Está bem... Olha! - olhando para o ecrã, enquanto ajeitava a roupa. - Trinta segundos! Prepara-te!

   5

   4

   3

   2

   1

   - Bem... Eu... Alguém tinha de ser escolhido e calhou a mim.

   - Mas imagino que estejas hiper-feliz! Foi o Presidente Alois em pessoa que escolheu o teu número! Aposto que nem tens dormido! Aposto que nunca imaginaste uma sorte destas.

   - Eu comprei o número porque o meu pai era um entusiasta da exploração espacial. Sonhava com viagens a Marte e com a hipótese de haver vida fora da Terra. Infelizmente, já não assistiu a isto. Foi a pensar nele que comprei o número.

   - Que querido! Mas fala-nos mais de ti! Quem é Jamie Santana?

   A emissão foi novamente interrompida.

   - Caímos sete pontos nas audiências e perdemos dois patrocínios! - protestou o técnico. - Quinze mil créditos que se foram e vamos precisar deles! Quero coisas com interesse, coisas que as pessoas queiram realmente saber!

   - Tens de falar mais, querido - detalhou a apresentadora. - O que dizes é muito bonito mas as pessoas querem emoções profundas. Muita tragédia ou muita alegria, ok?

   Apesar do pedido, Jaime não conseguiu trazer para a entrevista a emotividade desejada, mantendo as audiências em queda - algo verdadeiramente decepcionante, tendo em conta que aquela era a primeira aparição pública daquele que todos queriam conhecer. Felizmente, a podstation era secundária e era possível conter os danos...

   - Bonito! - protestou o técnico - O nosso sinal foi bloqueado. Mas que?... Perdemos a licença! 

   Jaime aproveitou o pânico dos anfitriões e foi-se embora sem que eles dessem conta.

   Quando saía do velho prédio no centro da cidade, uma horda de jornalista e mirones rodeou-o, afogando-o em centenas de perguntas. O caos foi interrompido pela chegada de uma dúzia de militares corpulentos que dispersaram à bruta a pequena multidão, deixando apenas passar um rapaz pálido e de traços delicados.

   - O meu nome é Adam Evan. Fui enviado para te vir buscar e levar-te a quem cuidará de ti. Já perdemos demasiado tempo. Foi difícil dar contigo... Tens o chip avariado? 

   - Obrigado mas não preciso de ajuda - rebateu Jaime sem lhe dar importância. - Adeus.

   - Espera. Fui enviado pela WASA. Não é uma questão de precisares... A menos que queiras abdicar do prémio.

   - Então é assim?...

   O rapaz fez-lhe sinal para que entrasse num grande electrocarro preto.

   - E o meu carro? - perguntou Jaime.

   - Aquela coisa? Dá-me o código e depois um dos soldados leva-o.

   Apesar da surpresa de receber uma chave metálica, o rapaz não disse mais nada e entrou pela porta oposta.

   - Há empresas globais interessadas em patrocinar-te, Jaime Santana. Vão gastar ziliões! A WASA precisa desses fundos. A tua percentagem não é má. Mas para haver esses patrocínios, não podemos voltar a ter tristes espectáculos como o de hoje. Os eleitores querem uma pessoa moderna, interessante, educada e sensível, um herói que venda produtos e serviços...

   Jaime ainda viu o casal da Harrisson39 ser arrastado por alguns soldados, enquanto outros levavam todo o material informático. Depois de um suspiro, recostou-se no desconfortável banco e serviu-se do sumo de amora que estava sobre uma pequena mesa.

   - Um herói? Que grande disparate...

   - Não, não é. Também há a questão da segurança...

   - Como assim?

   - Os fanáticos das seitas, os malucos... Já fizeram algumas ameaças ao programa e... a ti...  Temos de tudo: Cruzados Cristãos, Filhos de Gaia, os Revelation e por aí fora... Basta haver um doido que consiga ter acesso a uma arma e zás. É muito difícil que aconteça mas todo o cuidado é pouco. Não podes andar por aí como se continuasses a ser apenas mais um...

   - Só me faltava essa...

   - Nós estamos atentos. Não te preocupes com isso! Mas a minha função é outra. Hum... - agarrando-lhe o queixo e forçando-o a virar-se para si. - Não sei qual foi o teu médico mas já te digo que não era grande coisa...

   - Jaime enxotou-o com uma palmada.

   - Mas que médico?! Eu não fiz aperfeiçoamento. Nem irei nunca fazer! E para com isso...

   - Caramba! Onde estiveste a viver? Num buraco? Nem uma limpeza de pele?... Bem, pode ser que as rugas, as cicatrizes e... as singularidades sirvam o nosso propósito. Já estou a imaginar as parangonas: Humanidade retoma o envio de primatas para o espaço exterior! Sim, é capaz de vender...

   Jaime pisou o copo e olhou para ele.

   - Repete essa piada e tu é que vais precisar de cirurgia...

   A conversa ficou por ali e só foi retomada duas horas depois, quando pararam num posto de controle militar.

   - Vais viver aqui até ao dia da partida. É seguro e terás quem te oriente. Felizmente, temos algum tempo...

   - E as minhas coisas?

   - Os teus pertences foram trazidos enquanto davas a entrevista. Amanhã irás conhecer o Prof. Rosenberg e a tua assessora. Ela vive na casa em frente da tua. Só há duas. É fácil dar com ela. Ah! O código da tua casa é o mesmo da tua conta de email.

   - Como é que?...

   A pergunta foi interrompida pela travagem do electrocarro. A porta destrancou-se e Adam acenou-lhe. 

   - A da esquerda. Dorme bem.

   Jaime saiu e deu por si numa rua que parecia interminável, onde apenas havia duas casa, frente-a-frente. Tudo o resto era mato e escuridão. Os electrocarros arrancaram e deixaram-no naquele cenário irreal.

   Sem outra opção, abriu o portão, subiu a rampa de entrada, digitou o código e a porta abriu-se. A súbita voz do computador da casa assustou-o:

   "Bem vindo, Jaime Santana. A WASA deseja-lhe uma excelente estadia"

   - Vai bardamerda! - murmurou em resposta. - Até o meu mail vasculharam...

   Exausto, procurou uma cama. Ainda colocou a hipótese de explorar aquele lugar mas essa vontade esbateu-se no facto de já não dormir há quarenta e oito horas. Nem a esperada reflexão sobre tudo o que lhe acontecera foi capaz de travar o sono, que acabou por impor-se rapidamente e sem grande resistência.

 

2011 - Drako T. Haghen

 

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publicado por sá morais às 18:35